O paradoxo de Galelli
por Katherine Funke*
“Não preciso fazer muito esforço para me afogar na água ilógica”, diz a mocinha deste escafandro, e do bolso tira um livro: Cabeça de José (Nave, 2014). Pego-o nas mãos; está incrivelmente seco, intacto, e já vem com marca-páginas, indicativo de que será aberto e fechado e retomado inúmeras vezes antes de sua total compreensão, mesmo sendo relativamente curto.
Aí está: um livro que é uma provocação que é um rio que é um alento que é uma porrada que é uma mágica que é um mergulho que é um suspiro que é um objeto de arte e de contemplação que é um encontro com os rios e os risos e as rachaduras do “real”, e que resolve em parte, pela aura mágica & fantasiosa, a sedução sombria, sanguinolenta de Carne Falsa (Editora da Casa, 2013), o primeiro livro da autora.
Patrícia Galelli, 26, é uma catarinense de cabeça complexa, afogada plenamente em água ilógica, em boemia, em vida artística e cultural de Florianópolis (SC) desde que saiu de sua fria e saborosa Concórdia - não de vez, porque ali também sempre pode voltar para a comida da mamãe, ainda bem.
Nascido de um processo de escrita a jato, durante o último verão, o enigmático Cabeça de José (Nave, 2014) é dos mais bonitos e complexos lançamentos editoriais dos últimos tempos entre a nova geração de escritores catarinenses, com as ilustrações e design de Yannet Briggiler.
Acaba de sair da gráfica e do bolso do escafandro de Patrícia. Nessas suas primeiras semanas de recepção aqui no Planeta Terra, decidimos registrar o momento com essa breve entrevista com a autora - em que, mais do que explicar o livro, ela nos convida a navegar com o narrador da história de José, curtindo a viagem com um barco em cada pé.
Ultralits - (Tua) “Cabeça de José” critica a normalidade aparente, o chimarrão cotidiano, os clichês, as conversas de vizinhos, a exatidão do registro burocrático. Neste contexto, pergunto: de onde veio a inspiração - ou a necessidade - de escrever esta história e já publicá-la, exatamente um ano depois de “Carne falsa”?
Patrícia Galelli - Não sei se veio de alguma inspiração, mas com certeza veio da frustração de não ter sido astronauta ou neurocientista. O processo de criação do livro foi realmente rápido. Eu tinha algumas ideias que rondavam o título “Cabeça de José” e, nesse meio tempo, conheci melhor a Yannet numa conversa de bar e, dessa primeira troca de ideias, fiz três pequenas narrativas que ela ilustrou. Com esse material, o projeto de livro acabou contemplado pelo edital Elisabete Anderle 2013, viabilizando a publicação. Escrevi o livro nas férias de 2014, em fevereiro, e o lançamento foi logo depois, em agosto. Acho que foi um processo fast-book.
Desde quando (percebeste que) caminhas / navegas em águas ilógicas de rio sem sentido? Ou isso só acontece com teu personagem José, hã? Conte um pouco dessas descobertas, que são ao mesmo tempo ontológicas e humanistas…
Sinceramente, acho que sou um pouco perturbada com a vida, com essa coisa insana que é existir. Atrelada a isso, uma incapacidade de análise e de entendimento a respeito sempre me esmaga – e não, não faço terapia, e não faria, porque tenho a sensação que nunca mais conseguiria me livrar do tédio (eu ficaria olhando para o terapeuta por horas sem falar absolutamente nada). Tenho sinceras dificuldades com a ditadura da alegria, da beleza e da virtude - acho tudo uma balela sem tamanho, embora haja, como uma montanha-russa, as subidas e descidas e curvas perigosas dos momentos de riso e depois de leveza, pós-tensão. Como você pode perceber, não preciso fazer muito esforço para me afogar na água ilógica.
Teu livro saiu com prefácio de Luiz Bras. O que isso significou pra ti?
Luiz Bras é das pessoas mais amáveis que conheci. O prefácio dele em Cabeça de José foi muito generoso, reflexo do que ele é, assim, o tempo todo. Mas, apesar de ter adorado o texto, o contato com ele, e também com Tereza, é o que mais significou para mim - sou grata pelas trocas de informações, pela atenção que ele teve comigo e com o José ainda no processo de escrita do livro e pelos comentários importantíssimos que ele fez, antes, sobre o Carne falsa.
Alegrou-me muito ver a tradução para o espanhol, anexada ao final da narrativa, aproximando os hermanos da “cabeza de José”. Pretendes viajar com o livro - Uruguai, Argentina, algo assim?
Gostei muito da tradução para o espanhol, feita pela Eleonora Frenkel, acho que ela conseguiu passar todo o clima espacial e as intenções de ironia do livro. Se pudesse viajar pelas nações vizinhas, minha mochila já estaria à mão. Mas não é tão simples sair por aí, com o livro debaixo do braço, tendo um emprego formal. Ainda estamos, Yannet e eu, estudando as possibilidades para lançar na Argentina, país dela, e no Uruguai. De qualquer forma, o livro já circula por esses dois países em algumas livrarias, bibliotecas e instituições culturais.
Selecionado pelo Edital Elisabete Anderle, do governo do Estado de Santa Catarina, o livro ficou lindíssimo, com as ilustrações e o projeto gráfico de Yannet Briggiler, e a edição da Nave, um objeto de contemplação quase artesanal - pelo duplo da capa e sobrecapa, coladas e sem orelha. Pode contar mais de como foi esse processo - do texto ao livro?
O processo da narrativa escrita e da narrativa visual foi construído meio que simultaneamente. Tanto que as ilustrações não são representações do texto. Elas também questionam, perturbam, permitem outras leituras. Creio que nos permitimos, Yannet e eu, sentir uma com a outra esse universo de Paradoxo, a ilógica, a falta de senso, a espacialidade que tem no livro - como forma de suspensão, de não-pertencimento. Isso se deu também com o projeto gráfico, não foi involuntário. Foi, antes, bastante refletido, quadro a quadro, quase como uma brincadeira de cinema estático.
Fica claro que Discórdia é uma alusão a Concórdia, tua terra natal. O livro também foi lançado lá. Que sensação te deu voltar lá para lançar “Cabeça de José”, um livro ao mesmo tempo mais lúdico e mais maduro do que “carne falsa”, e ainda mais abertamente livre, contracultural, ácido e lisérgico?
Voltei para Floripa, depois de lançar o livro lá, estufada de afeto (e um pouco mais gorda, por causa da comida da mãe). Tenho algumas crises com – lá eu passo frio até na primavera e a água ilógica me faz tomar alguns caldos – , mas faço sempre questão de voltar, de rever as pessoas, de conversar. É um carinho diferente, um carinho de cúmplice, que recebo. Então, acho que posso dizer que ter ido a Concórdia com o José foi mais ou menos como ter aprontado alguma coisa fora de casa e ter passado ilesa, sem levar bronca nenhuma – acho até que já deixei esquematizados a fuga e o esconderijo se essa minha “travessura” der muito errado.
“José não tem sobrenome, é um cidadão com outras preocupações.” Só esta pequena frase já soa como uma grande paulada na cara da tradição (família, instituições, propriedades), mas contra ela já fala também toda a linguagem escolhida, “fora do mundo, bagunçando sem parar a direção da correnteza dos rios”. Quando tens de falar no teu cotidiano com(o) as pessoas de “cabeça exata” , no seu trabalho pragmático de jornalista pós-graduada em Administração de Empresas pela FGV, como é que fica tua cabeça? (Não quero te mandar para o analista, só quero entender um pouco de como administra as coisas aí dentro, afinal às vezes por aqui também passo por paradoxos semelhantes).
Se o analista que você citou tivesse poderes telepáticos, eu toparia ir, porque a pergunta é complexa. Seria mais fácil se alguém entrasse na minha cabeça, reorganizasse os pensamentos e respondesse isso. Mas bem, na maioria das vezes tenho breves colapsos nervosos com os “baratinhos” da burocracia e com a importância dada a coisas sem importância que empacam o desfecho do que realmente importa (hehe). Aí posso mapear o processo do que ocorre comigo, resumidamente, assim: i) “emputecimento”, com cenas fortes - tipo “meu mundo caiu”; ii) reclamações irônicas em voz alta; iii) minuto de silêncio iv) constatação imediata de que estou sendo idiota; v) respiração profunda; vi) emissão de desafio para o sistema nervoso central, com o alerta: “acalme-se, acalme-se, acalme-se!”; vii) outro minuto de silêncio e viii) volta à noção básica de que tem coisa mais importante pra me chatear na vida.
Se pudesses escrever uma resenha sobre teu próprio livro, o que não deixaria de dizer?
Acho que daria um spoiler: diria que, para lidar com a correnteza dos rios da cabeça de José, é melhor seguir a ideia do narrador e calçar um barco em cada pé.
Publicado anteriormente no blog Ultralits, de Katherine Funke e Patrick Brock,
em novembro de 2014.
* Katherine Funke escreve literatura de ficção e não-ficção e, desde janeiro de 2017, toca a Editora Micronotas em Joinville (SC). Autora de “Coração de galinha” (conto, Micronotas, 2017), “Lucida Sans” (poesia, Micronotas, 2017), “Compra-se sonho” (conto, Músculozine, 2016), “notas mínimas” (contos, Solisluna, 2010), e “Viagens de Walter” (romance, Solisluna, 2013), escreveu um dos contos da antologia de brasileiros publicada pela editora alemã Klaus Wagenbach, Popcorn Unterm Zuckerhut (Berlim, 2013). Teve projetos contemplados com Bolsa Funarte de Criação Literária (Salvador, 2010), Bolsa Funarte de Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura (Salvador/Florianópolis, 2013), Edital Setorial de Literatura da Funceb-BA (Bahia, 2013), Bolsa de Fomento à Literatura do Ministério da Cultura (2016), entre outros. Bacharel em Comunicação Social / Jornalismo pelo Instituto Superior e Centro Educacional Luterano / Bom Jesus Ielusc (Joinville, 2002). Fez especialização lato sensu em Jornalismo Contemporâneo – O desafio das redações no século XXI , pelas Faculdades Jorge Amado (Salvador, 2007).