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banho de ruína

por Patrícia Galelli

I.

vento entre o latido dos ouvidos,

os pelos na ponta da escuta -

o cão não morde os mentidos.

a carne como se dela despregasse alívio químico, crua, estrias regressivas  – saudade do corpo esganiçado do país que ainda não conhecia as ninhadas de barranco em solavanco de precipícios, as facas de escutar, as raspas de esperar

: vento entre os grunhidos de tímpanos, atestado advertido, tempo histórico num altar - tempo histórico emperrado, o tempo debaixo do casco dos asnos.

 

 II.

ácido enfaixado de miss brazil

polui num riso cinza os montículos de dias

do cadafalso, nem que a coincidência exata na noite de fim de mata

: acaso objetivo do fogo.

: lama tóxica - vale ao demente mais do que gente.  

: óleo no estômago dos peixes.

foi-se com o boi e as cordas a prótese auditiva

: a escuta pantanosa habita o músculo da ruína.

 

III.

ácido gasoso se espalha nas fronteiras,

às margens do entre-lugar da américa latina,

ácido que faz nascer a virulência – a violência avermelhada que é ver uma mulher descalça, uma mulher com os cabelos cortados à força por homens

: cena empedrada na anestesia do léxico – não sou um animal selvagem na vitrine, é meu latido o bicho empalhado na garganta,

fosso queimado da palavra que não diz.

 

IV.

água de ruína faz mal

para a pele, mal

para o cabelo, mal

para as unhas, mal

para seguir os dias, mal

para o banho de ruína que eu tomo, uivando,

calcário de saliva, palavra cimentada na boca

: o país e os vizinhos na boca de um sapo-vulcão,

o mal

é um hábito coletivo mais do que a morte, a ruína

: o farelo nebuloso que sai de um ouvido que late.

 

V.

a ruína tem cacos de memória, farelos de verdade, blocos de tijolos despedaçados da justiça que não foi.

a ruína é a casa continuada do grunhido vindo do tímpano-precipício.

banho de ruína, política pública na era dos esquecimentos -

saúde preventiva, terapia, raspa a pele, enruga a carne.

: traz a tona entre os destroços os documentos da barbárie.

Publicado anteriormente no Jornal Rascunho nº 237, de Janeiro/2020, na coluna Poesia Brasileira, de Mariana Ianelli.

 

Escrito em novembro de 2019, quando o que era ruído despontava em ruína pelo desgoverno brasileiro. Quando em Vinto, na Bolívia, tinham sequestrado a prefeita Patricia Arce, espancado Patricia Arce, cortado o cabelo de Patricia Arce, jogado tinta vermelha em Patricia Arce, uma mulher cercada por homens, apenas homens - uma mulher descalça e humilhada por quilômetros. Um embrulho que não coube na linguagem. Como não coube também o óleo no litoral brasileiro e como não cabe o fogo nos biomas amazônia, pantanal, cerrado e mata atlântica, que se somou ao pandêmico 2020 - acaso objetivo do fogo que já estava no texto: o mal é um hábito coletivo
mais do que a morte.

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