Carne falsa e mal-dita
por Helano Ribeiro*
Gritos, pedaços de carne, misturas amorfas de corpos em uma luta confusa. As pinturas de Francis Bacon são um reflexo, às vezes cruel, do sentido (ou falta de sentido) da vida e da morte, um lembrete de que não somos mais do que carne, que nossa decomposição é agora. A carne crua, visceral, é a imagem de sua obra, tensiona os limites do corpo, revelados através do erotismo e da transgressão.
Carne falsa, livro de estreia da escritora catarinense Patrícia Galelli – publicado pela Editora da Casa –, apresenta, já de partida, uma inquietante capa: uma máscara de porco, obra do artista Fernando Lindote – primeiro indício de seu desconforto estético, bem como Francis Bacon gostaria. É um conjunto de narrativas que não tensionam somente os limites da imagem, mas também da linguagem. “Fazer a linguagem gaguejar”, como diria Gilles Deleuze, essa parece ser a atividade nada sutil do trabalho de Patrícia Galelli. E se o corpo é esse lugar mal-dito na Modernidade, parece que a escritora o captura em sua forma mais ignóbil e erótica, mas não menos poética por isso. É uma experiência linguística de contornos melancólicos. É aí que reside a beleza de seu livro: “tenho aqui dentro uma ferida toda azul, de tanto guardar o amor num cantinho do freezer”.
Como sair dessa câmara fria criada pela autora? Não há saída, é uma ida em direção ao nada, vazio criado por sua escrita. Neutro que nem se fecha, nem deixa capturar sua singularidade. A escrita de Patrícia Galelli poderia figurar ao lado das imagens de Francis Bacon, em que carne e sangue apontam para um mundo abjeto, sem limites, sem leis: “não contou que estava grávida, o broto de carne, a carne que lhe doía. sempre de calça vermelha para apagar marcas de sangue”. Esse mundo é de ordem outra, em que tempo e espaço aparecem rarefeitos e fluídos.
É deste modo que, nas narrativas virulentas de Carne falsa, escrita e lâmina na carne se tornam instrumentos de inserção do corpo, através de vozes perturbadas, confusas, incertas, saturninas, muitas vezes através de um discurso carregado de chagas: chagas abertas não em busca da cura, mas em busca de desvelar as próprias feridas do corpo e sua via crúcis às avessas. Pois aqui não se trata de literatura que caminha para a luz, mas sim para seu recolhimento numa experiência interior.
O leitor se encontra diante de um vazio visceral, que lhe retira qualquer vontade de racionalidade. Não há o que pensar, logo, a única coisa que lhe resta é parar à beira do abismo. E acender um cigarro.
Publicado anteriormente no Diário Catarinense, em julho de 2013.
* Helano Ribeiro é professor adjunto de Língua Alemã na Universidade Federal de Pelotas, professor do programa de pós-graduação em literatura na mesma universidade.Possui doutorado (2015) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em Teoria da Literatura. Trabalhou de 2006 a 2008 como Professor Leitor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na Universität zu Köln (Alemanha). Desenvolve trabalhos de literatura e teoria crítica dentro das temáticas: literatura e ética, literatura e imagem, otobiografias e otoficções, tradução e messianismo em Walter Benjamin, assim como a produção discursiva e imagética da arte e literatura de imigrantes, refugiados e apátridas.