Cabeça(s) de José
por Demétrio Panarotto*
Paradoxo é a cidade de Cabeça de José, o segundo livro de Patrícia Galelli. Paradoxo é a cidade de Patrícia Galelli e talvez seja a cidade de cada um de nós; cada qual de seu jeito, e cada um com as suas percepções, se é que todos temos as percepções com o mesmo senso aguçado e irônico que a jovem escritora demonstra ter em seu segundo livro, publicado um ano após a boa recepção de Carne Falsa.
Patrícia Galelli, em Cabeça de José, é uma discordiense querendo levar o mundo à Concórdia, onde já se viu? E assim, no livro, faz dois movimentos, o primeiro deles, bem captado na apresentação do livro escrita por Luiz Bras — “Paradoxo é floripa, é sampa, é Nova York e Tóquio!!” —, ou seja, Cabeça de José pode ser qualquer cidade do mundo, é, junto, aquilo que é universal, aquilo que pode te levar o mais distante possível (inclusive) do corpo, de (e sem fugir do) Paradoxo; e o segundo, é aquele que faz o sentido contrário, que te leva, junto com José, ao ponto de partida da escritora, sua cidade natal, Concórdia, a praça, as pessoas que tomam chimarrão, as que não tomam e todo um imaginário interiorano. Somos convidados a fazer, ao ler o livro, os dois percursos, o externo, que te leva o mais longe possível e que pode ser um lugar qualquer no mundo contemporâneo em que vivemos, e o interno, interior, aquele que faz o movimento de retorno, e — por que não? — aquilo que invade o espaço sagrado do corpo. A passagem abaixo, do conto amor pelas criaturas invertebradas, sintetiza um pouco isso:
"José vê o caramujo quando mergulha a cabeça nas profundezas oceânicas do seu aquário no quarto, fechando muito bem os olhos, é claro".
O aquário é o oceano, e o quarto é o mundo.
Esse movimento feito pela escritora, que dá a abertura para dois mundos, e que pode te levar o mais longe possível, faz-me lembrar de Glauber Rocha: por mais que seu cinema, durante a década de 1970, percorresse caminhos os mais distantes, cosmopolitas, o cineasta de Vitória da Conquista continuava a pensar as questões relacionadas ao seu país, mas, especificamente, às questões de um outro Brasil, sertanejo, interiorano. O Brasil de Glauber como ponto de partida de sua cinematografia ficou notório em Deus e o Diabo na Terra do Sol, por exemplo. O movimento realizado por Patrícia Galelli é muito parecido, mesmo estando longe de sua cidade natal, base forjadora de sua personalidade, ela alinha as duas frentes e, deste modo (junto com as nuances de Carne Falsa), anuncia os primeiros sinais de sua personalidade literária.
Assim, os moradores de Cabeça de José se dividem nos de cabeça exata (os que sofrem de clichê, pois se amparam nos órgãos do palpite, a boca, os olhos, o cérebro), os de cabeça vazia (primos das pessoas de cabeça exata, e sofrem de sudorese, e que pingam suor até se desidratarem) e os de cabeça vizinha ou tipo-José (o local da formação do tédio); um mundo que se parece com outros e, ao mesmo tempo, parece sodomizado pelo mantra da mídia televisiva, onde as pessoas perderam as referências marcadas pela escuta e parecem viver a ditadura dos olhos e da boca. Como se o mundo não precisasse mais escutar e se contentasse em ver e falar, simplesmente por, muitas vezes sem entender o motivo, ter que opinar sobre aquilo que vê, sem dar tempo para que as ideias se sedimentem.
Cabeça de José, e o título do livro nos revela isso, também anuncia aquilo que são as referências de Patrícia. Carlos Drummond de Andrade parece a mais evidente, e por aí passa um pouco dos elementos poéticos que constituem o texto. Na construção desta cidade imaginária, Histórias de Cronópios e de Famas, de Julio Cortázar, parece ter um papel importante numa divisão imaginária dos personagens e do espaço.
O texto de Cabeça de José conta, ainda, com um diálogo intenso com as imagens produzidas por Yannet Briggiler, que emprestam uma atmosfera de ficção, uma sideração da cabeça entre o ter e não ter, entre o sofrer e não sofrer com a gravidade. Yannet Briggiler parece conduzir o texto para uma outra dimensão, em que as imagens construídas escondem mais do que revelam sobre Paradoxo. E, por último, e com o mesmo cuidado e apreço, conta com as traduções para o espanhol realizadas por Eleonora Frenkel, um outro diálogo, tão intenso quanto.
Em Paradoxo estamos todos nós, somos convivas, o que serve para nos colocar em rota de colisão com os paradoxos que nos perseguem. Ao sermos convidados a percorrer as linhas de Cabeça de José, nos damos conta que esse imaginário já nos pertence há muito mais tempo do que imaginávamos. Estas são as minhas cores de Paradoxo, quais são as suas? Em nada isso é um desafio, apenas um convite à leitura de Cabeça de José.
Publicado anteriormente na revista Subtrópicos nº2, em setembro de 2014.
* Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben). Publicou: Borboletas e Abacates (Argos, 2000); Mas é isso, um acontecimento (Editora da Casa, 2008, poemas); 15’39” (Editora da Casa, Alpendre, 2010, poemas); Qual Sertão, Euclides da Cunha e Tom Zé (Lumme Editor, Móbile, 2009, livro/ensaio); Crônica para um defunto (dengo-dengo cartoneiro, 2013, poemas); O assassinato seguido de La bodeguita (Butecanis Editora Cabocla, 2014, contos); Poema da Maria 3D (Coleção Formas Breves, e-galáxia, 2015, e-book, conto); Ares-condicionados (Editora Nave, 2015, contos); A de Antônia (Miríade Edições, 2016, infantil); No Puteiro (Butecanis Editora Cabocla, 2016, poemas); Café com Boceta (Butecanis Editora Cabocla, 2017, poemas); Blasfêmia (Butecanis Editora Cabocla, 2018, poemas); 18 Versos para o funeral de Demétrio Panarotto (Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018, poemas), Tratamento da Imagem (Patifaria, 2018, conto); Arquipélago (Patifaria, 2018, infantil), Lotação (Medusa, 2018, poemas); Vozes e Versos (Martelo Casa Editorial, 2019, poemas, com Ana Elisa Ribeiro e Marcelo Lotufo). Responsável, ainda, pela Organização de: Livres Somos Versos, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2018, poemas) e Cartaze, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2019, poemas); Cerzindo e Cozendo (Butecanis Editora Cabocla, 2020, poemas) mais alguns discos e alguns filmes.